domingo, 29 de abril de 2012

Os palavrões do Cunha

     Plagiando a receita de alguns vendedores para sensibilizar seus clientes: eu poderia estar escrevendo, agora, sobre esses personagens deletérios que infestam a vida pública nos governos, legislativos e empresas. Há sempre 'inspiração' para um número infindável de textos. Mas vou dar um descanso ao meu fígado e lembrar uma passagem inesquecível do meu dia a dia com meus vizinhos e parceiros de sueca da carvoaria que funcionava na rua onde eu morava, a Capitão Rubens, em Marechal Hermesm, naqueles idos do início dos anos 1960.
     Aprendi os segredos desse jogo com eles, observando, primeiro. Depois, dividindo a mesa e bancos improvisados com caixotes de madeira, quase sempre à sombra de um enorme ficus que ficava na calçada oposta, justamente em frente ao 'conjunto comercial' da nossa quadra: a padaria, a loja de instrumentos musicais e a carvoaria.
     Era ali que normalmente nos reuníamos para conversas fiadas, discutir futebol e jogar cartas. A sueca exige duas duplas e parceiros que entendam as 'mensagens' trocadas durante cada 'mão'. Dois contra dois. Permanecia na mesa a dupla que conseguisse vencer quatro mãos. Não havia apostas - nunca houve. Apenas a alegria de vencer, de dar uma 'bandeira' (conseguir todos os 120 pontos em jogo e todas as cartas); uma 'cara de gato' (quatro a zero).
     Zulmiro e Zeca, os donos da carvoaria, só conseguiam jogar aos domingos, único dia de relativa folga, ou quando chovia e o movimento caía a zero. Nos temporais, usávamos a proteção da cobertura dos galões de querosene, também vendido ali. Dona Maria, mulher de Zulmiro, praguejava de longe, sempre que via o marido "a folgar", torcendo para um freguês chegar e interromper a jogatina.
     Antônio Vassoureiro, irmão de Dona Maria, era figura constante, pois só apregoava seus produtos, de bicicleta, na parte da manhã. Já 'Seu' Antônio garrafeiro não tinha folga, exceto aos domingos. Carregava sacos e sacos de garrafas e jornais velhos das sete da manhã às cinco da tarde. Cunha - sócio de um caminhão - limitava-se a olhar, enquanto esperava a chegada de 'Zé Pequeno', seu companheiro, enorme, quase dois metros, que morava um pouco distante, anunciada por uma buzinada.
     Em uma tarde de janeiro (férias escolares), eu e mais dois amantes do jogo disseminado por portugueses preparamos os caixotes e ficamos na expectativa de mais um jogador, para completar os quatro necessários. Cunha estava por ali, ao nosso lado, mas não aceitou o convite. Ele sabia que Zé Pequeno poderia chegar a qualquer momento, embora ainda faltasse algum tempo para a hora combinada entre eles.
     Tanto insistimos que ele resolveu sentar para completar a mesa, com evidente alegria. Definimos as duplas (por sorteio, como sempre) e coube a mim sortear o trunfo e distribuir as cartas, dez para cada um. Cunha pegou seu bolo de cartas e estava se preparando para abrir quando Zé Pequeno dobrou a esquina, mão na buzina. Acabara de almoçar mais cedo e resolveu antecipar a saída em algo em torno de 15 minutos.
     A reação do Cunha passou ao anedotário local. De uma só vez, num fôlego só, conseguiu formar uma frase absolutamente compreensível usando apenas e tão-somente palavrões. Uma torrente de palavrões - cinco, seis diferente, unidos de uma maneira tão perfeita que exprimiram tudo o que ele estava sentindo. Ato contínuo, atirou as cartas que não chegou a ver no caixote e subiu na cabine do caminhão, sem olhar para trás.
    
 

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