domingo, 4 de março de 2012

A minha verdade

     Há poucas coisas mais degradantes que a tortura, uma violência extrema aplicada a alguém já subjugado. Quando empregada pelo Estado - guardião obrigatório da lei e da ordem -, assume naturalmente o peso de uma vilania. Ninguém, com um mínino de sensibilidade humana, pode defender tortura e torturadores, independentemente de terem provocado a morte. Basta o ato, em si, para merecer a reprovação.
     Faço a ressalva, entretanto, que não vi - em nenhum momento dessa já longa e desgastante discussão em torno da Comissão da Verdade - uma defesa direta da tortura e/ou de torturadores. Há, sim - e isso parece ser convenientemente esquecido -, vozes (entre as quais a minha) que defendem não os crimes e criminosos, mas as diretrizes da Lei da Anistia, negociada ao extremo pela sociedade e aprovada pelo Congresso. A partir da promulgação da Lei, já não há, formalmente, crimes, algo a julgar. Essa é a essência do acordo firmado pela sociedade brasileira.
     Um acordo - convenientemente esquecido - que beneficiou, também, aqueles que se insurgiram contra os Governo Militares e executaram atos quase ou tão bárbaros quanto os produzidos pelos inimigos de então.
     A anistia formatada no Brasil, como se deu, não pode ser interpretada ao gosto dos detentores do poder momentâneo. Sua validade e a abrangência ficaram bem claras na decisão do Supremo Tribunal Federal. Não há espaços - dentro da lei - para retaliações, mesmo que calçadas na compreensível dor de quem perdeu pessoas queridas ou foi vítima de desmandos.
     A pedra que foi colocada sobre crimes cometidos por agentes do Governo também sepultou os atentados dos insurgentes, que não foram poucos: execução a sangue frio de 'inimigos'; assassinato de civis em atentados a bomba contra aeroportos, por exemplo; assaltos a banco, muitos com vítimas absolutamente inocentes (caixas e clientes); e sequestros, uma das formas mais infames de ação, comparável à tortura.
     Os praças, oficiais e policiais que cometeram crimes hediondos (e a tortura é hedionda, não há dúvida sobre isso) têm, pela Lei, direito ao mesmo tratamento dos que também mataram e sequestraram, com requintes de crueldade, em várias ocasiões. Caso contrário, um eventual governo alinhado ideologicamente com o regime de exceção que prevaleceu no país de 1964 a 1985 poderia exigir saber 'a verdade' sobre atos cometidos, por exemplo, por muitos que estão hoje à frente dos destinos da Nação, incluindo a presidente Dilma Rousseff. Não é o que se pretendia à época em que o país retomou seu rumo legal.
     Determinados argumentos - como os que ouvi da ministra Maria do Rosário, da Secretaria de Direitos Humanos, ofendem a inteligência, embora sejam emocionalmente mais bem palatáveis. Em entrevista à jornalista Míriam Leitão, a ministra ignorou a história e afirmou que houve, apenas, uma "reação da sociedade civil a favor da democracia". Houve bem mais do que uma reação, como todos sabemos. E não partiu do que podemos entender como sociedade civil, alinhada, em sua imensa maioria - e essa é mais uma das grandes e dolorosas verdades que tentamos apagar -, nos primeiros anos, com o regime militar. Mais: a democracia, como forma de governo, jamais esteve em primeiro plano, nos dois lados.
     À ditadura de 'direita' (brutal e estúpida, como qualquer ditadura), antepunham-se basicamente os que lutavam pela implantação de um ditadura de 'esquerda' (estúpida e brutal, como qualquer outra) - na qual, admito, eu também acreditava, naqueles anos 1960/1970 . Vivíamos um clima que reverberava a divisão ideologica imposta ao mundo durante o período mais acentuado da Guerra Fria. Paralelamente, havia a luta no campo da ideologia, na resistência diária, que não cedia à violência e que, ao fim, mostrou-se vitoriosa.
     O resultado, conquistado pela maioria absoluta da Nação, pode ser visto hoje: o Brasil é uma democracia de fato e de direito, reconstruída sobre muita dor, é verdade. Uma dor que ainda atinge com a mesma intensidade tanto a família do ex-deputado Rubem Paiva (desaparecido, provavelmente assassinado em uma instalação militar) quanto a do soldado Mário Kozel, que pôde, ao menos, reunir os pedaços do seu corpo, despedaçado por um carro bomba quando prestava serviço militar em São Paulo, aos 18 anos. O sofrimento pela morte de um ente querido não deveria ter matiz.
     A insistência em remexer feridas não cicatrizadas está provocando apenas infecções em camadas da população. Os exemplos da Argentina e do Chile - onde vem sendo feita uma revisão na concertação que prevalecia - não podem ser usados como referências. Embora frutos de uma ideologia muito semelhante, foram formas de ditadura diferentes entre si - eventualmente muito mais violentas e radicais do que a brasileira. Com causas, consequências e finais distintos.
     Em síntese: o Governo não busca a verdade inteira, e sim uma metade. A metade que exibe apenas os crimes cometidos por um dos lados. Para ser sincera, honesta, a Comissão da Verdade deveria, ironicamente, assumir os princípios que nortearam a Anistia: ser ampla, geral e irrestrita. Como está posta, tem um inegável e condenável apelo à vingança.

Um comentário:

  1. Recebi, e transcrevo, comentário sobre o texto acima, postado por um antigo e querido amigo, Paulo Carvalho:
    "A sua verdade, Marco, é também a minha. Parabéns pelo texto, que revela um visão serena, sensata e desapaixonada. Se o governo tivesse esse bom senso, não estaria agora enfrentando uma crise".

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