quarta-feira, 13 de abril de 2011

As lições de 'Portugal Pequeno'

     Ao lembrar recentemente minhas origens familiares (meus avós e pai imigraram para o Brasil, saídos de Ponte de Lima, uma pequena - na época - cidade ao norte de Portugal) e destacar a tolerância como uma das qualidades do povo brasileiro, fui remetido, inevitavelmente, à década de 1950, vivida intensamente em uma rua de terra batida, no longínquo subúrbio de Marechal Hermes. Coincidentemente, ou não - não tenho certeza -, fomos morar justamente num trecho de rua apelidade de 'Portugal Pequeno', em uma casa de vila, de sala e quarto.
     E não era para menos. Nesse meu mundo infantil - de incontáveis peladas na rua e pipas no telhado - funcionava a única padaria das redondezas, dirigida por 'seu' Aníbal, português como meu pai e pai de um dos meus melhores amigos, o Aires. Praticamente ao lado, destacava-se a onipresente carvoaria do bairro, dos irmãos Zulmiro (casado e pai de três filhas) e José, o Zeca, que deixara mulher e filha em Portugal, à espera de melhores dias, que chegaram, finalmente, depois de quase duas décadas de poeira de carvão.
     Nos quartos de madeira construídos nos fundos do terreno, outros dois imigrantes marcavam presença, ambos chamados Antônio: um vassoureiro (cunhado de Zulmiro e inexplicavelmente flamenguista, num universo de vascaínos) e um garrafeiro. Sem falar no Cunha, o mais jovem de todos, que dividia a boléia de um caminhão velho com o 'Zé Pequeno'. Um pouco mais distante, outro José, o leiteiro.
     Era no enorme poço da carvoaria do Zulmiro que nos abastecíamos durante os constantes períodos de falta de água. Era lá, ainda, que minha mãe comprava querosene e o carvão para nossos pequenos fogareiros, logo substituídos por um 'moderno' fogão a gás de quatro bocas. E também era lá que existia o único telefone das redondezas (o número 176), um modelo preto, a manivela, que servia a todos da comunidade, por uma quantia módica. Aos mais chegados, como nós, era permitido dar o número para parentes distantes. E era o Zeca quem nos chamava, em casa, nas raras vezes em que recebíamos ligações.
     Foi nessa carvoaria, sob o "coberto" que protegia os galões de querosene e água sanitária vendidos a granel, que eu, com uns oito ou nove anos, aprendi os segredos da 'sueca' - um jogo de cartas pelo qual me apaixonei e que passou a fazer parte do meu lazer suburbano - e conquistei uma festejada vaga em torno do caixote de madeira que servia de mesa. Um moleque entre adultos, aprendendo a 'pedir' o naipe, marcando levemente a carta; a socar o caixote, para demonstrar que queria trunfos; a fazer passagens; a levar o jogo sempre contado. Foram centenas de 'bandeiras' (quando uma das duas duplas conquista todas as cartas) e 'caras de gato' (quatro partidas a zero).
     E foi essa carvoaria que funcionou como uma referência de tolerância, de integração. Era lá, também, que 'seu' Nicola, descendente de italianos, um segundo-tenente músico do Exército, meu vizinho na vila, também jogava cartas. Assim como meu amigo Jorge, um caboclo, filho de um sargento da Marinha nascido no Pará. Ou 'seu' João, um velho escafandrista baiano.
     Viver em 'Portugal Pequeno' foi, para mim, um aprendizado de vida.

2 comentários:

  1. Lembro ainda, Marco, da cena: na rua Capitão Rubens, em frente à carvoaria, um pirralho alourado, no meio de portugas de cara suja de carvão, em torno de um caixote, jogando sueca. Atiravam às vezes as cartas com força sobre a "mesa" e gritavam o naipe que queriam. Eu, àquela altura um principiante na modalidade, ficava admirado com a rapidez com que jogavam as cartas e com todos aqueles gestos, para mim, incompreensíveis. Ao final de cada partida, não era necessário contar os pontos, todos sabiam quem venceu e não havia a menor discussão.
    Bons tempos. Lá se vão uns cinquenta anos...

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  2. Era assim mesmo, Paulo. Nos dias de sol, nos espalhávamos sob um dos muitos fícus então existentes na Capitão Rubens. Quando chovia, ficávamos espremidos sob o tal "coberto". Os fícus se foram, com a ampliação do Hospital Carlos Chagas. As lembranças continuam.

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