quinta-feira, 24 de março de 2011

Barrado no baile (ou: 'Liga não, mô')

     Marilê bem que tentou fingir que nada estava acontecendo. Acordava, colocava comida para a pequinês Martinha, ligava o rádio na 'FM do Pagode' e começava a fazer o café, retomando uma rotina de muitos anos atrás, quando o marido ainda não tinha sido promovido a chefe do setor de suprimentos do Instituto do Açúcar e do Álcool.
     Durante aqueles últimos oito anos, ela e Linácio tinham experimentado uma vida jamais sonhada. Viajaram muito, ganharam muitos presentes de fornecedores, ávidos por conquistar as boas graças do novo chefe, conseguiram bons empregos para as crianças e ainda tiveram o que pensavam ser um prêmio de consolação, quando o marido se aposentou: a nova chefe de seção era amiga do casal, o que garantiria, pelo menos, convites para alguns convescotes regados ao "velho oitão", como Linácio brincava, e fartos em enroladinhos de salsicha, os preferidos da família.
     A realidade, no entanto, se mostrou diferente: "A vida é dura Marilê", constatava o marido, de hora em hora. E voltava à leitura e releitura (por falta de hábito, esquecia rapidamente tudo o que lera minutos antes) das histórias em quadrinhos dos suplementos infantis abandonados no sofá pelos netos, nas já não tão constantes visitas dominicais.
     A sorte de Marilê é que havia o tal do futebol: "Benditos americanos", festejava intimamente, trocando, sem se dar conta, a origem de um dos prazeres do "homem". "Se não fosse o tal do futebol, quase todos os dias, o que seria da vida dos dois?", se perguntava, temendo antecipadamente a resposta.
     Mas nem mesmo o futebol - um dos seus times de coração liderava o campeonato - foi suficiente para aplacar a última desilusão de Linácio. Ele sabia que a assinatura de um novo contrato para fornecimento de materiais de higiene - a grande estrela seria o papel de três folhas - para toda a diretoria seria marcada por uma festança. Um amigo, dos poucos que restaram, já lhe confidenciara que, dessa vez, o 'Oitão' seria substituído pelo 'Bala', coisa fina.
     Marilê, precavida, mandara o vestido de festa para a lavanderia e repassara, ela mesma, o terno mais bonito do marido. E os dois ficaram esperando o convite, como quem espera uma loteria acumulada. Cada toque da campainha provocava um sobressalto. Nada. O tempo passou na janela e o convite não veio.
     - A vida é dura, Marilê", constatou Linácio.
     - Liga não, 'mô'. Acho que hoje tem jogo do Curingão na televisão", consolou Marilê.

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