domingo, 27 de outubro de 2013

Encruzilhada moral

    Reconheço que é um tema difícil, controverso. Mas não posso ignorar o impacto provocado pelas imagens (fotos e vídeos) da agressão estúpida e covarde ao coronel da Polícia Militar de São Paulo - responsável, justamente, por manter o diálogo com manifestantes. E não apenas o que elas mostram de bestialidade, mas o fato de existirem, de terem sido conseguidas da maneira que foram.
     Para mim, o registro do incidente revela, também, uma encruzilhada moral, que pode ser sintetizada em uma questão: até que ponto, jornalistas em geral, fotógrafos e cinegrafistas em particular, têm o direito de assistir e, de certa forma estimular, impavidamente, ações bestiais, brutais, inqualificáveis?
     Ao realizar documentários sobre a vida selvagem, seus realizadores argumentam, para justificar a profusão de cenas violentas, que não cabe ao homem interferir no processo natural. É verdade. Por mais que seja cruel, o documentarista não pode interferir para salvar um indefeso filhote de leão das garras e presas do macho dominante. A natureza deve seguir seu curso, selecionando as espécies, provendo a sobrevivência.
     Mas quando a vítima de uma catástrofe ou acidente é uma criança que - por exemplo - esteja sendo carregada por uma correnteza? O que fazer? Gravar a cena, imaginando um possível prêmio, ou atirar a câmera, bloco de anotações e caneta de lado e tentar salvar uma vida?
     Assim como outros profissionais que convivem com as dores humanas, o jornalista que trabalha em tragédias também precisa criar um escudo emocional, abstrair. Ou não conseguirá, jamais, atender às exigências de sua missão. Mas há casos em que o sentido humanitário, de decência, deve prevalecer. Vivi, particularmente, ao longo das décadas passadas em redações, alguns momentos de inflexão. Não muitos, em função da diversidade das minhas atividades, mas significativos.
     Relatei um deles no meu recém-lançado Nariz de cera (Editora Verve, à venda, também pelo site www.livrariareliquia.com.br), uma coletânea de lembranças da minha vida em jornais. Ao acompanhar uma investigação sobre sequestro do menino Carlinhos, caso que emocionou o país, na primeira metade dos anos 1970, me deparei com o interrogatório de um suspeito, realizado por um policial que contava com o apoio de O Globo, jornal onde eu trabalhava na época.
     Em dado momento, na sala ao lado, ouvi o investigador substituir as perguntas pelo que imaginei ser uma estrondosa 'borrachada'. Abri a porta e exigi que aquilo que eu apenas intuíra não se repetisse, assumindo, inclusive, um risco pessoal com relação aos agressores. E, aí, eu me pergunto, e a vocês: é moralmente aceitável que um grupo de jornalistas assista, como assistiu e gravou, a um grupo de criminosos espancar um policial que estava a serviço do Estado, sem esboçar a menor solidariedade?
     E antevejo algumas respostas. Haverá quem defenda o distanciamento, sob o argumento que ele proporcionou as imagens que causaram repúdio na maioria decente da população. É uma teoria até certo ponto respeitável, mas que não se sustenta inteiramente, pelo que representa de desumanização. Findo o ataque, graças à intervenção de outro policial, que conseguiu dispersar os agressores covardes, a única reação dos repórteres presentes ao ato limitou-se ao questionamento da presença de um policial armado.
     Assim como repudio a estupidez policial, não posso deixar de registrar esse meu desconforto com a insensibilidade que vem brotando das nossas ruas, praças e avenidas, graças, especialmente.

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