segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

Flores mortas. Grama ressecada

     Antes que algum aventureiro comece a atirar pedras e colocar meu nome na lista de alguma milícia, quero declarar, sob juramento (poderia ser sob 'o' Juramento), que nasci na Saúde, talvez o mais carioca de todos os bairros dessa cidade, num sobrado da Rua Leôncio de Albuquerque, nada mais do que uma ligação entre as emblemáticas Ruas do Livramento e da Gamboa. Portanto, fico bem à vontade para lamentar, com pesar, que, a cada momento, mais fica visível - para quem quer ver - a existência de dois Rios, absolutamente distintos entre si.
    Um, o dos cartões postais, tema constante dos nossos colunistas, é o do mar; da Baía da Guanabara; do Pão de Açúcar e do Corcovado; de Copacabana, Ipanema e Leblon; do Jardim Botânico e da Gávea; da Lagoa Rodrigo de Freitas; e - vá lá - da Barra e do Recreio. Esse é o Rio próximo da perfeição, onde só há corpos sarados e bronzeados, restaurantes e bares que fazem a moda. Água de coco a R$ 4. Onde há ônibus, táxis e Metrô. Onde os serviços públicos estão sempre presentes. O Rio do "sabe com quem você está falando?".
    E há o outro Rio, que representa 90 por cento dessa cidade-município. É o Rio das ruas esburacadas; da escandalosa e criminosa falta de água nesse verão avassalador; da inexistência de esgoto sanitário (o despejo de grande parte da Zona Oeste é feito diretamente na Baía de Sepetiba, nos rios que desembocam na Baía da Guanabara e nas lagoas da Barra da Tijuca, sem tratamento, asqueroso, fétido).
    É o rio da desoladora Avenida Brasil, contraponto da Avenida Atlântica; de Realengo e Bangu; de Oswaldo Cruz e Bento Ribeiro, subúrbios lembrados apenas como acessórios das reportagens sobre carnaval e futebol. De Cordovil e Anchieta. Do calor absurdo; dos ônibus e trens superlotados; das vans e kombis criminosas. Do trânsito caótico e sempre engarrafado. Um Rio de paredes cinzentas ou de tijolo à vista; sem sombras, repleto de grandes e pequenas favelas (que um dia, logo logo, vão se torrnar grandes), excluídas do circuito cult, que inclui maltas de turistas ávidos pelo contato com esse terceiro mundo glamurizado, palco de ridículos safaris.
    Talvez seja o calor. As flores mortas. A grama ressecada.
   

Um comentário:

  1. Excelente, Marco! Parabéns pelo primoroso texto! Eu, tão carioca quanto você, sinto o mesmo desencanto com a nossa cidade. São dois Rios, sim, e o primeiro - o dos cartões postais - parece que vai aos poucos encolhendo ainda mais, sucumbindo ante à feiura e decadência do restante dessa cidade, que um dia já foi maravilhosa.
    Paulo Carvalho.

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