sábado, 2 de novembro de 2013

Pisando em estrelas

     Por algum motivo incerto e ainda não sabido, acordei hoje com 'Chão de Estrelas', mais especificamente com alguns versos que iam e voltavam, sem parar: "A porta do barraco era sem trinco; mas a Lua furando nosso zinco; salpicava de estrelas nosso chão. E tu pisavas nos astros distraída".
     Talvez seja o resultado de um processo de associações que exercitei inconscientemente, a partir da conversa entre duas amigas, com as quais divido o prazer dessa incursão que voltei a fazer na vida acadêmica - depois de tantos anos! -, cursando História na realmente especial Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro.
     As duas, jovens, como todos os meus demais novos amigos, falavam sobre um programa de televisão, The Voice, ou algo semelhante (confesso que nunca vi), sobre a qualidade de alguns concorrentes, diversidade cultural etc. Imagino que, de alguma forma, essa conversa sobre música tenha despertado minhas lembranças e me remetido a Nelson Gonçalves, a voz mais melodiosa que já ouvi.
     'Chão de estrelas' foi composto por Orestes Barbosa e Sílvio Caldas (música), um de seus mais fortes intérpretes. Mas a voz de Nélson Gonçalves ('The Voice', para mim), que também gravou, sempre foi inigualável, exceto por Frank Sinatra.
     Não importa. Esses versos, citados acima, estão no topo da minha lista dos mais incríveis da música popular brasileira, ao lado de "Queixo-me às rosas, mas que bobagem; as rosas não falam, simplesmente as rosas exalam o perfume que roubam de ti" e "Ouça-me bem, amor; presta atenção, o mundo é um moinho, vai triturar teus sonhos, tão mesquinhos, vai reduzir as ilusões a pó", de Cartola, o maior de todos os compositores brasileiros de todos os tempos.
     A dimensão dos versos de Orestes Barbosa, esse outro monstro sagrado da MPB, pode ser medida por uma observação de ninguém menos do que o poeta Manuel Bandeira. Para Bandeira, "tu pisavas nos astros distraída" é o mais belo verso já escrito nessa terra em que tudo dá.
     Abaixo, a letra completa de 'Chão de Estrelas' (só o título já é sensacional!!!), repleta de outros momentos geniais.

"Minha vida era um palco iluminado
E eu vivia vestido de dourado
Palhaço das perdidas ilusões.


Cheio dos guizos falsos da alegria
Andei cantando minha fantasia
Entre as palmas febris dos corações.


Meu barracão lá no morro do Salgueiro
Tinha o cantar alegre de um viveiro
Foste a sonoridade que acabou.


E hoje, quando do Sol a claridade
Forra o meu barracão, sinto saudade
Da mulher, pomba-rola que voou.


Nossas roupas comuns dependuradas
Na corda qual bandeiras agitadas
Pareciam um estranho festival.


Festa dos nossos trapos coloridos
A mostrar que nos morros mal vestidos
É sempre feriado nacional.


A porta do barraco era sem trinco
Mas a lua furando nosso zinco
Salpicava de estrelas nosso chão.


E tu pisavas nos astros distraída
Sem saber que a ventura desta vida
É a cabrocha, o luar e o violão".

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